Existe racismo no Brasil?

A mídia nunca escancarou tanto o racismo como nas últimas semanas! Vale a pena, portanto, lembrar alguns discursos sobre este assunto tão espinhoso e cuja “bananalização” vem sendo amplamente repudiada em revistas, TVs e redes sociais.

No dia 13 de maio de 2014 celebramos a inconclusa efeméride dos 126 anos da Lei Áurea, que alforriou os últimos homens e mulheres mantidos em cativeiro no Brasil. Na época, apenas 8% dos trabalhadores brasileiros ainda vivia sob os grilhões dos escravizadores, enquanto que os outros 92% dos trabalhadores e trabalhadoras já tinham comprado, conquistado ou ganho a liberdade por outras formas. Desde 1850 a Inglaterra vinha impondo sanções contra o tráfico humano e um sistema trabalhista inadmissível, mas nossa sociedade se agarrou enquanto pode a esta infamante forma de enriquecimento. Fato este que garantiu ao Brasil o papel de último país da América a abolir a escravidão.

Em seu discurso pró-abolição, a Princesa Isabel chegou a elogiar a abnegação dos latifundiários em abrir mão de suas “peças” sem exigir ressarcimento (sic!). Naturalmente, ao perder o benefício legal de explorar a mão de obra no sistema escravocrata, as elites brasileiras não se dedicaram ao planejamento de qualquer forma de ressarcimento para os milhões de homens e mulheres que tiveram seus direitos e corpos violentados por ela. Decidiram, com toda a naturalidade, que não seria necessário, seria custoso demais e até injusto, e agiram de comum acordo para garantir que tais “privilégios” jamais fossem viabilizados, com mecanismos políticos e ideológicos tão eficazes que até hoje tem gente que zomba e ri do tricentenário holocausto da população negra em terras brasileiras e suas nefastas conseqüências. Inclusive no Paraná. Até hoje, a população enfrenta o cinismo de uma sociedade que evita ou impede a efetivação de novas leis e ação afirmativa conquistadas para inclusão e melhoria das condições de vida dos afrobrasileiros.

Mas por que a Lei Áurea permanece inconclusa? O que faltou para a Princesa Isabel completar a Abolição? Tentativas como a Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário só geraram problemas sociais. Ao libertar os escravizados, Isabel e os Senadores da época nada mais fizeram que trocar os grilhões físicos por outros que, embora invisíveis, mantiveram a população em condições miseráveis. Os milhões de “libertos” foram simplesmente realocados das senzalas para as ruas, as favelas, os presídios. Foram proibidos de trabalhar, estudar, exercer sua cultura, sua religião, entregues à sanha da perseguição física e simbólica exercida pelos cúmplices de tais perseguições… Faltou acabar com a violência policial contra a população negra, traduzida em verdadeiro genocídio de uma juventude que, por ser negra em um país racista, não “merece” repercussão nos noticiários, não causa comoção nacional, não mobiliza campanhas na mídia, não arranca discursos inflamados sobre a dor das mulheres e mães negras. Faltou desconstruir a imagem pejorativa e caricatural perpetuada pelo imaginário racista que justificou a naturalidade de torturas, estupros, assassinatos, venda de seres humanos. 

No dia 13 de maio de 2004, o Senador Cristovam Buarque de Holanda subiu à Tribuna do Senado para lembrar que, 116 anos após a Abolição, ainda precisamos concluí-la. No seu discurso ele lembra que “naquele 13 de maio de 1888, alguns latifundiários foram desapropriados para que 720 mil seres humanos ainda escravizados pudessem ser tratados como brasileiros, salvos da venda, livres da violência física e do trabalho forçado.” E ressalta: “Foi uma Lei que alforriou os escravizados, mas não os libertou. Não os incluiu na sociedade.” Ainda precisamos de uma revolução na lógica para percebermos que uma escola pública eficiente, que salários dignos para professores, que os custos de um hospital são, no mínimo, tão rentáveis e necessários ao desenvolvimento do país quanto indústrias, estradas ou outras prioridades, e ainda permitem cumprir abolir a pobreza que agrilhoa o imenso contingente populacional excluído da lógica das posses. O Senador em seu discurso clama ao então Presidente Lula que complete a abolição. Clamor atual. Clamor que ainda se choca quotidianamente com as barreiras do racismo explícito, velado, estrutural e institucional.

Nove anos depois, no dia 13 de maio de 2013, o Senador Requião também subiu à Tribuna do Senado para lembrar aos seus colegas de trabalho a abolição inconclusa a ser ainda efetivada em nosso país.  Em sua habitual contundência, o Senador Requião, homem branco, representante do Paraná, o Estado mais negro do sul do país – com 30% da sua população autodeclarada preta ou parda, segundo o IBGE de 2010 – afirma que “a libertação não significou qualquer mudança de comportamento para a sociedade em relação a eles.” O Senador, entre outras tantas informações sobre a trágica realidade brasileira construída pelas elites para a população excluída, cita o projeto de Lei que prevê a diminuição da maioridade penal no Brasil, Lei que legitimaria ainda mais a violência policial contra a juventude negra e levaria à construção de ainda mais presídios para uma população que precisa de mais escolas e de mais qualidade e salários dignos para os professores.

Um exemplo de ação inclusiva seria a realização de uma campanha massiva para favorecer a efetivação da Lei Federal 10.639, aprovada em 2003 e que inclui a História e Cultura Africana, Afrobrasileira e Indígena e a Educação para as Relações Étnico-raciais em sala de aula. Mas a sociedade brasileira resiste e insiste em achar impossível esta Lei: com a mesma naturalidade com que julgou a Abolição eticamente desnecessária, economicamente inviável e politicamente difícil. Vejamos como se comportará com relação à Lei Federal 12.288, aprovada em 2010, que finalmente prevê os mecanismos legais de inclusão sócio-cultural e econômica de mais de 51% da população brasileira que faltaram naquela Lei Assinada em 13 de maio de 1888.

Às vezes, algumas Princesas e Senadores tomam partido diante da chacina e alteram o rumo da História. Que homem ou mulher com CONSCIÊNCIA não faria o mesmo?

 

Melissa Reinehr e Zelador Cultural Candiero, da Pastoral Afro da Paróquia Santo Antônio da Lapa-PR e do Centro Cultural Humaita – Centro de Estudo e Pesquisa da Arte e Cultura Afrobrasileira. Candiero é um dos Delegados Municipais e Estaduais das Conferências Nacionais de Cultura e de Promoção da Igualdade Racial.

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