Tributo ao Professor Ruy

Em uma tumba egípcia, semelhando um palácio, impressionaram-me os dizeres grafados pelo escriba do ocupante: “Eu darei mil graças aos que pronunciarem meu nome depois que eu houver morrido”.

Compreendi então que quando somos lembrados ou quando recordamos alguém que não está mais conosco, faremos reviver seus ideais ou a obra que praticou. Nesse sentido o meu tributo ao Professor Ruy.

Meu objetivo não é apenas relatar fatos ou datas concretas, rebuscados em arquivos, mas sim homenagear um professor que é lembrado pelos contemporâneos. Episódios esparsos, porque num escorço se sintetizam partes de uma vida que transcende.

Afirma o Dalai Lama que “há dois dias no ano que não existem: o de ontem e o de amanhã”. Mas, pedirei licença ao sábio budista para uma incursão ao passado, resgatando alguns figurantes de uma época.

Por que figurantes? Porque cabe a todos nós um papel na vida – alguns discretos, como coadjuvantes, outros no papel central como protagonistas.

Não há profissões mais elevadas ou menos – a nobreza consiste em exercê-las com amor, dignidade e conhecimento. Todos sempre temos algo que aprender e algo que ensinar e essa busca de conhecimento leva toda uma vida.

O professor Ruy como pesquisador, instrutor, educador, crítico, diretor foi um apaixonado pela História, ciência que revivia para os ouvintes de tal maneira que só não aprendia quem, alheado, deixava passar longe dos ouvidos essa voz tão clara.

Leitor assíduo, condição sine qua non à profissão, estava sempre a par de acontecimentos presentes e passados. Mesmo depois de retirado das lides escolares, essa paixão acompanhou-o de por vida. Na última vez que o vi na Lapa, recomendou-me a leitura do Ulisses de James Joyce – o personagem foi emprestado de Homero, mas diferenciado pela técnica descritiva e psicológica do escritor irlandês.

Corria o ano de 1943. O Brasil vivia uma ditadura e o Dr. Peregrino foi nomeado pelo interventor no Paraná, Manoel Ribas, como prefeito na Lapa, cumprindo uma missão especial: organizar os festejos do Cinquentenário da Revolução Federalista, em que nossa cidade representou um papel relevante.

Prefeito dinâmico, procurou maquilar a cidade tornando-a digna desse acontecimento. O que causou pesar foi a remoção das históricas pedras que revestiam a Barão do Rio Branco, substituídas pelos inestéticos paralelepípedos. Papai os chamava ‘duquinhos’.

Cito o fato do Cinquentenário porque, entre o corpo de funcionários da Prefeitura na Lapa, estava o contador Ruy Alvarez Vieira. Ainda não era o professor Ruy.

Passaram-se os festejos, deixando recordações e até casamentos.

Agora, a cidade ansiava por um ginásio. Famílias de posses, como dizia o professor Lauro, “mandavam desasnar os filhos na capital”, mas havia outros que sonhavam com estudos mais elevados, tendo que se contentar com profissões que não requeriam tanto cunho científico. Apesar de que comungo o dito popular espanhol: Lo que la natura no da, Salamanca no presta (o que a natureza não dá, Salamanca não empresta), em alusão à famosa e douta universidade espanhola, um curso às vezes é uma ajuda para galgar degraus no conhecimento e quiçá, no sucesso pessoal.

O Colégio Novo Ateneu realizou esse sonho: criou um ginásio com um primeiro ano com os seguintes em sucessivo, mais tarde encampado pelo governo estadual, ampliado com o Colegial e uma Escola Normal.

Necessitavam de professores – uns poucos vieram de Curitiba, outros foram selecionados na Lapa: o professor David, acadêmico em Direito, pôs-nos em contacto com o mundo físico; como latinista, o professor Mildemberg. O professor Lauro, diletante pelas Ciências Naturais. Quando lhe perguntaram como se sentia diante de uma classe, respondeu: “Não me preocupo com esse mar de alunos.

Quando os olho, vejo na minha frente uma plantação de repolhos”…

Ao professor Ruy coube-lhe a disciplina de História, mostrando-se bom conhecedor dessa ciência que dizem ser um tanto mentirosa, talvez pelo fato de que muitos historiadores contemporâneos desses sucessos, de acordo com seus interesses, pequem em relação à Verdade.

O Dr. Newton se esforçava por semear nas cabeças as tais antipáticas e tão necessárias regras gramaticais.

Como eu gostasse de História Antiga, influência de meu pai e de Monteiro Lobato, despertei a atenção do professor Ruy e alguns “dez” enfeitaram meu boletim escolar. Em uma ocasião (o professor teve toda a razão e o castigo foi pequeno. O aluno pensa que o professor nada percebe de suas “artes”- puro engano) cometi um “sacrilégio”: uma colega e amiga não afinava com História e numa prova em que ela ia entregá-la em branco, impulsivamente dei-lhe a minha e redigi outra com os mesmos conhecimentos. A decepção e a punição vieram juntas – dez para a colega e oito para mim…

O professor Ruy fez parte na Diretoria do Clube Congresso Recreativo – lamentavelmente extinto, pois participou de um passado social. Consolo-me – os impérios passam, por que não os clubes?

Voltando ao clube, o professor gostava de organizar eventos culturais que terminavam em saraus. Com a prima Ruth, fizemos o primeiro ano ginasial. Ajudou-me no Latim (para mim, declinações indeclináveis) e nos desenhos. Habilidosa, inteligente, fez em Curitiba o “Madureza” ginásio em um ano, voltando a Lapa para ingressar na recém aberta Escola Normal.

Nas férias, com o regresso da prima, fazíamos o footing em frente ao cinema e não perdíamos as danças no Clube. O professor Ruy nos fazia de par algumas vezes e o xodó que manifestou pela prima acabou em casamento.

Ignoro se o professor praticava algum esporte, mas caminhava bastante. Numa ocasião comprou um carro, aquisição que durou até bater algumas vezes nos pilares que sujeitavam os portões de sua casa. Papai comentou: “Pessoa muito inteligente não dá bom chofer…”. Pode ser discutível essa afirmação…

Incentivava os esportes – graças a seus esforços, numa área do colégio foi construído um estádio que mais tarde homenageou ao Prof. Mildemberg.

O Colégio anualmente disputava jogos com cidades vizinhas: Rio Negro, Mafra, União da Vitória. Numa dessas olimpíadas, o Prof. Ruy decidiu-se a comparecer. Com a Profª Ruth, a Profª Rita e eu preferimos nos hospedar no hotel em vez de residências postas à nossa disposição.

Em um desses encontros, um professor vindo de Curitiba sempre procurava estar a meu lado até me convidar para jantar uma paca no restaurante do hotel em que se hospedava. Arrependida por aceitar o convite, mas tarde para recusá-lo, convidei meus colegas afirmando-lhes que fora extensível e assim comparecemos os quatro.

O anfitrião, quando viu o “bando”, não perdeu a compostura pedindo ao garção que aumentasse a mesa, preparada para dois e até com velas. Disse-me o Ruy, olhando para os arranjos: “Tem certeza que fomos convidados?”

A ceia decorreu em ambiente agradável, porque entre profissionais do mesmo ramo sempre se trocam experiências.

Apesar de o professor Ruy ser sempre calmo com os alunos, a disciplina funcionava a contento. Fazia-se respeitar, qualidade importante em um educador.

Os desfiles comemorativos, apesar da indisciplina de alguns alunos nos ensaios, no dia festivo saíam-se bem. Em suma, o colégio ia bem, os professores cumpriam com suas tarefas, a secretaria ordenada, o que me lembra os versos camonianos: “Forte rei, faz forte fraca gente/ Fraco rei faz fraca forte gente”. Assim se comportam os governantes.

Depois que o professor Miranda, o primeiro diretor, optou por regressar à capital, houve rotatividade no cargo e o Prof. Ruy ocupou essa função até que candidatos políticos vitoriosos não concordaram com seu direito de opinar e como é usual, a eletividade troca de posição os funcionários e aos opositores os dispensa. O professor, vítima dessa politicagem, foi exonerado de sua função na Prefeitura e do cargo de diretor do Colégio.

A intolerância política, religiosa, racial ou social parece ser inerente ao Homem. Quantas, foram suas vítimas…

Na capital, para onde se mudou com a família, exerceu o magistério com a mesma mestria, em diversos estabelecimentos, até se aposentar.

Hoje, talvez esteja dialogando com alguns dos companheiros que o antecederam, ou quem sabe discutindo Ética com Sócrates, História com Heródoto, Filosofia com Aristóteles e os peripatéticos. Ou com os literatos, que tanto os apreciava.

Ruy Alvarez Vieira (1922-2009), professor de História, nasceu em Curitiba, estabeleceu-se na Lapa/Pr lecionando no Colégio Novo Ateneu, de que foi também Diretor. De volta a Curitiba em 1957, lecionou no Colégio Estadual do Paraná, Colégio da Polícia Militar do Paraná e Escola Técnica de Comércio (hoje Escola Técnica da UFPR). Autor de ensaios biográficos.

Aline Dittrich Zappa é Professora, pesquisadora e escritora. Nasceu na Lapa/PR e reside atualmente em Buenos Aires.

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