A revolta das águas

A recente tragédia que se abateu sobre o Rio de Janeiro deixou-me preocupado com a ponte sobre o Rio Sagrado. Precisava saber se ela ainda estava lá. De Curitiba, desci a serra em direção ao litoral. No trevo de acesso a Morretes, segui à direita por uma estrada de terra. Após rodar um quilômetro, para minha alegria, encontrei-a intacta. Há 38 anos ela assegura o escoamento da safra de banana, que responde por boa parte da economia local.

Explico minha aflição. Em 1972, eu era Aspirante no 5º Grupo de Artilharia Autopropulsado. Quem serviu sabe que, no quartel, as missões mais complicadas sobram para os “aspiras”. Na Ação Cívico Social (ACISO) que o Grupo realizou em Morretes, coube a mim reconstruir a ponte, posta abaixo pelas chuvas que, quando caem no alto da Serra da Graciosa, fazem transbordar os cursos d’água que correm  aos seus pés.

À primeira vista, achei exagerados os 27 metros que separavam as cabeceiras, cujos escombros entulhavam o leito de apenas 6 metros de largura do rio. Mais tarde eu descobriria o porquê: quando o Sagrado deixa de ser Sagrado, suas águas sobem, espraiam-se e atingem velocidade tal que levam tudo o que há pela frente. Era o que tinha acontecido com a enorme pilastra central e as cabeceiras da velha ponte. Aparentemente fácil, alguns detalhes tornavam  a missão um desafio. Éramos artilheiros, especialistas em canhões, não em engenharia. Não havia equipamento adequado. Nem dinheiro existia. Levamos um mês angariando doações.

Entre sargentos, cabos e soldados, somávamos trinta. O único “especialista” era o Venzon, um excelente sargento. Como estava construindo sua própria casa, ao menos sabia preparar concreto. Sobrava boa vontade. Uma tora de madeira, roldana e corda serviram de bate-estaca. Equipes de cinco soldados se revezaram durante dias na estafante monotonia de puxar, suspender e soltar.

Após semanas de trabalho insano, as pilastras ficaram prontas. Quando começávamos a preparar o piso, chegou a  notícia que eu seria substituído. O Grupo iria realizar sua campanha de  tiro em Santa Catarina. Retornei com alguns soldados à minha linha-de-fogo, deixando com um amigo, o Tenente Edelmi, a conclusão da obra.

Resolvi contar esta pequena história para revelar que lamento não termos deixado uma placa de bronze em homenagem aos soldados que enfrentaram uma dura rotina, a improvisação e o humor de um rio que se alterava cada vez que chovia no alto da serra.

Se fosse hoje, antes mesmo de iniciar a obra, uma plateia estaria lá, paga para aplaudir e ouvir promessas vãs das autoridades. A lamentar, o fato de muitas dessas mesmas autoridades,  assíduas frequentadoras de “inaugurações virtuais”, não terem se dignado a levar sua solidariedade às centenas de famílias cariocas vitimadas por deslizamentos provocados pela fúria das águas e pela irresponsabilidade de quem vive da propaganda e do lançamento, sob holofotes, de mirabolantes planos bilionários, que nem sempre saem do papel. Será que, no Morro do Bumba, elas seriam aplaudidas?

() General da Reserva

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