Um Papai Noel de Gauche

A confusão na Sierra Maestra custara a vida de um garçom. A viúva estava desesperada, pois o patrão não pagara os encargos sociais do falecido. Petrolino dobrou o jornal e, pela janela, viu ônibus passarem lotados. No seu, climatizado, ninguém ia em pé, exceto em dia de protestos como aquele. Circulando pelo corredor, o representante do sindicato dava instruções de como proceder quando parassem na entrada da refinaria.

Petrolino era extremamente dedicado à empresa. Ganhava muito bem. Numa época de dólar supervalorizado, os reajustes acompanhavam as variações da moeda americana. Quem pagava era o consumidor. O combustível mais caro elevava a inflação às alturas. Por ter consciência disso, Petrolino considerava exageradas certas reivindicações. Se pudesse, não desembarcaria. Mas não tinha opção. Um carro de som bloqueava a passagem do ônibus, enquanto piqueteiros ameaçavam quem tentasse prosseguir à pé.

Entusiasmado com a presença maciça da imprensa, o presidente do sindicato deitou falação por mais de hora. Lá do alto, bradou por outro reajuste. Exigiu ônibus novos para transpotar o pessoal (Petrolino lembrou do povão no busão), mais direitos sociais (aqueles negados à pobre viúva do garçom), adicional de periculosidade, inclusive para os dirigentes do sindicato (o mesmo dos colegas que se arriscavam nas plataformas em alto-mar) e outras tantas benesses. Ao encerrar, a voz irada, ampliada pela aparelhagem de som, ameaçou com greve.

De volta ao ônibus, Petrolino foi questionado pelo vizinho de poltrona se ouvira falar na boate Sierra Maestra. “Li algo a respeito”. “Sabe quem é o dono? O moço que acaba de discursar”. No dia seguinte, o líder petroleiro foi primeira página dos jornais. Do proprietário da Sierra Maestra, embora fosse a mesma pessoa, não mais se falou.

Atualmente, os ex-chefões do sindicato, que pouco sofreram com o ar poluído da refinaria, ocupam altos cargos em estatais, enquanto o quase setentão Petrolino é apenas o aposentado do quinto andar. Amargurado, percebe que ninguém se lembra de sua dedicação à empresa. Sente-se um morto-vivo. Decide reagir e mergulha nas obras de Jean-Paul Sartre e Rimbaud. Descobre que sua vocação era ser de “gauche”, não um esquerdista qualquer. Nem por isso deixa de criticar a França por nunca ter aplicado as teorias dos seus brilhantes filósofos, preferindo exportá-las. Se não deram certo na União Soviética, é porque foram mal interpretadas.

Passa a saudar a todos com um “bon jour” e a tratar de modo raivoso aquele burguês, dono da mercearia, que o explora. Precisa mudar o visual, pois imagem é tudo. Deixa crescer barba e cabelo. São brancos, mas pouco importa. Inspirado em Chávez, compra um par de botas, boina e camisa vermelhas. Mas, para impactar, providencia uma calça também vermelha, ou “rouge”, como diz quando quer impressionar os vizinhos. Com a nova vestimenta, perambula ruidosamente pelo bairro, espalhando sua revolução.

Em dezembro, a filha chega para passar o Natal. Ele quer mostrar-lhe como tinha evoluído. Aguarda-a vestido à caráter. Quando a porta se abre, os netos correm para abraçá-lo: “Papai Noel, nós te amamos”!

Rendido à pureza das crianças, o radical Petrolino espera só o Natal passar para voltar a ser o velho Petrolino, orgulhoso por ter ajudado, honestamente, o país a alcançar a autossuficiência. Raspa a barba e rasga a fantasia, que tacha de “ridicule”. Por sorte, os netos ainda lhe perdoam certos galicismos.

() General da Reserva

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