Marmitas de gelo

“Fechem as janelas. Ninguém pode descer!”, bradava um ferroviário. Com as mãos nos bolsos, aconselhava: ”Não convém que a população os veja, é a ordem”.

“Não estamos pesteados! Somos os alpinos que voltam da Rússia!”, gritou exasperado um dos soldados, pouco antes de o trem pôr-se de novo em movimento.

“Alpinos… E daí? Vocês já se olharam no espelho, cambada de nojentos!”, tornou, possivelmente cumprindo ordens do novo governo, o funcionáro da estação.

Assim foram recebidos em seu país os maltrapilhos sobreviventes da frente russa, entre eles o recruta Julio Bedeschi. A Júlia, divisão à qual pertencia, havia perdido 18.000 dos seus 20.000 homens. Bedeschi, apesar de sofrer todo tipo de preconceito, tornar-se-ia um conceituado médico. Ele deixou registradas, em “Cem Mil Marmitas de Gelo”, as misérias que se abateram sobre um corpo de elite, isolado na imensidão de um país hostil, e que encontrou, não se sabe como, forças para suportar a fatalidade de uma guerra perdida.

O ódio com que ele e seus companheiros foram acolhidos em seu país causou-lhe enorme tristeza. Era apenas soldado . Não era fascista, mas foi tratado como tal. Mussoline já havia morrido e com ele o seu regime, que o havia recrutado para também morrer, mas nas estepes russas. Se soubesse que a recepção seria tão hostil, talvez preferisse ter ficado por lá, sob o gelo, como 90% dos seus companheiros.

São conhecidas as palavras de um veterano, que há séculos já vaticinava: “Amamos nosso Deus e nossos soldados nos momentos de perigo – não antes. Passada a refrega, Deus é esquecido e os soldados desprezados”. A história teima em se repetir, como vimos no último dia 29, no Rio de Janeiro. É o que revelam as palavras de alguém que esteve lá, das quais faço questão de registrar alguns trechos.

“Eu não estava no Brasil no dia 31 de março de 1964. Encontrava-me servindo no Contingente das Nações Unidas no Congo, voando C47. Comecei a acompanhar as notícias do Brasil referentes ao progresso da ‘esculhambação’, com perdão da má palavra, provocada pelos sindicatos, pelas ligas camponesas e, afinal, pela tentativa de desestabilizar o braço armado da nação, com quebra da hierarquia e da disciplina. Comecei a planejar o não regresso ao Brasil, pensando nas minhas raízes em Portugal, retirando, depois, meus familiares do inferno que seria implantado no País.

Volto agora aos acontecimentos de 29/03/2012, em que cerca de 300 idosos assistiam a um painel em que, simplesmente, se fazia a análise do que ocorrera naquele passado, que teima em ficar próximo. Em baixo, agitadores clamavam, aos gritos, contra pacíficos e ordeiros militares e civis.

Ao final, estávamos sitiados dentro da ‘Casa da República’, orientados a não sair do prédio. Pensei, de imediato, na possibilidade de que um dos mais idosos resolvesse enfrentar a turba. Resolvi enfrentá-la, antes que um deles, mais debilitado que eu, o fizesse. Junto com meu ‘irmão’ Juarez saí à rua. Enfrentamos a manifestação programada como pacífica, coisa que comunistas não conseguem realizar. Xingamentos variados partiram da ‘matilha’, pois nunca atuam sozinhos. Um deles, percebendo que eu ia falar, desafiou: ‘fala, fala alguma coisa, seu nazista!’ Controlei-me. A partir daí, fomos andando até chegar ao metrô, perseguidos pela alcateia e protegidos por um policial que, coitado, tentava defender os dois velhinhos que ousaram usar do seu direito de ir e vir e da livre manifestação de pensamento.

Foi terrível receber a cusparada que é vista na foto. Por ela, percebe-se que os cuspidores tinham todas as características de drogados, com olhos esbugalhados. Aí, imaginei: e se eu estivesse armado? Cheguei a pensar nisso antes de ir à reunião. A justiça julgaria uma reação desproporcional, um tiro dado por alguém que dedicou mais de 50 anos ao serviço da pátria contra um imbecil que ousara cuspir no seu rosto?”

Fica aí, meus amigos, um relato do Brasil intolerante de hoje, triste realidade, pois sabemos o quanto é difícil praticar a tolerância contra intolerantes.

Mesmo assim, continuo otimista. Quero acreditar que a turba de jovens cuspidores, doutrinados para odiar, alimentados mais por mentiras do que por verdades, não estavam lá, da mesma forma que o funcionário da estação ferroviária italiana, cumprindo ordens de um novo governo dito democrático.

() General da Reserva

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