Cristo disse: “Não julgueis, para não serdes julgados. Pois com o mesmo juízo com que julgais, sereis julgados, e com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos” – Mt 7.1s.
Os corações devem ser unânimes dentro das diferenças e não devem importar-se com a dessemelhança, necessária, útil, salutar para o convívio pacífico e harmonioso. Isto acontece quando eu sou condescendente com a pessoa próxima, embora seja de posição inferior e tenha menos dons do que eu, e quando prezo seu trabalho mais braçal, tanto quanto o meu de pregador ou como autoridade estatal e do povo em cada estado da nação, embora meu trabalho seja superior e produza mais do que o dele, que não é o do exercício do ministério da reconciliação. Pois eu não devo atentar para as aparências exteriores, e, sim, para o fato de que ele vive na mesma fé e no mesmo Cristo, e tem tanto proveito da graça divina, do Batismo e do Sacramento quanto eu, embora eu tenha uma tarefa e um oficio diferente e mais elevado, pois é um só Deus que cria e dá tudo isto e que se agrada do mais insignificante tanto quanto do mais elevado, contanto que não seja infestado de impenitência e incredulidade.
No mundo hostil a Cristo e Seu Evangelho governa a louvável e bela virtude da qual fala Paulo, segundo a qual cada pessoa agrada a si mesma, como quando um ser humano vem em nome do diabo e não enxerga os seus próprios vícios, mas somente os dos outros. Isto é inerente a todos nós por natureza e não conseguimos livrar-nos disto, embora sejamos batizados e procuremos viver o mais ilibado possível. Adoramos embelezar e enfeitar a nós mesmos e observar o que há de bom em nós, fazendo ‘cócegas em nós mesmos’, como se fosse nossa propriedade. E para que somente nós sejamos bonitos, não enxergamos o que há de bom no próximo, antes o mantemos longe de nossos olhos. Se percebemos nele qualquer ‘sardazinha’, enchemos os olhos e a aumentamos tanto que, por causa dela, não enxergamos nada de bom, embora ele tivesse olhos como um falcão e um rosto como de anjo. É como se enxergasse alguém num manto dourado, talvez, com uma costura ou um fio branco perpassado, e eu, com os olhos fixos somente naquilo, consideraria aquele manto desprezível, enquanto eu próprio me consideraria maravilhoso! em meu ‘roupão grosseiro’ com um remendo dourado. Assim acontece que não enxergamos nossos próprios vícios, dos quais estamos repletos, da cabeça aos pés, enquanto não enxergamos nada de bom em outros. Onde este defeito natural se alastra entre os cristãos, aí se começo a julgar, de modo que, em breve, desprezo alguém outro ou o condeno quando tropeça um pouco e revela alguma fraqueza. Ele, por sua vez, me retribui com a mesma moeda, medindo com a mesma medida, como Cristo diz aqui, procurando e criticando somente as piores coisas que pode descobrir em mim e, deste modo, o amor é totalmente suprimido e as pessoas começam a morder-se e a devorar-se mutuamente, até consumirem um ao outro e se tornarem totalmente acristãos, ainda que à luz da sua razão e inteligência se autoajuízem iguais aos ‘anjos de Deus’.
Eis o que acontece quando se observa a vida de alguém outro e não se olha para si mesmo. Aí, logo se encontra algo que nos desagrada, e ele faz a mesma descoberta em nós, como também os gentios se queixam de que entre eles ninguém enxerga o que carrega nas costas, mas o que vem atrás dele enxerga-o muito bem. Isso quer dizer: ninguém enxerga suas próprias carências, mas num outro as enxerga logo. Agora, se agirmos de acordo com o que enxergamos deste modo, o único resultado é difamação e condenação mútuas. Isto é obra do diabo na cristandade, até que consiga que nada mais resta entre eles do que julgamento tanto da vida, quanto da doutrina, para que o reino de Cristo – que é um Reino unânime, concorde e pacífico tanto na doutrina quanto na vida – seja dividido e, em seu lugar, governe puro sectarismo, arrogância e desprezo da cristologia. [Segue]