E éramos felizes…

Nós, sexagenários, somos seres humanos privilegiados remanescentes de uma geração que viu a estréia do Pelé na Copa do mundo de 1958, que cantou Beatles, que curtiu o calhambeque do Roberto Carlos, que assistiu irmãos coragem na Rede Globo… Ouvimos muito sobre a construção de Brasília e da chegada do homem à Lua. Digo ouvimos porque a televisão era muito restrita na época.

Andávamos descalço e, para ir ao colégio, usávamos uniforme confeccionado em brim e sapato colegial com sola de aproveitamento de pneus automotivos. Se estudava música, se respeitava a bandeira de nossa pátria. Cantávamos o hino nacional com a mão sobre o coração e com sentimento real, tínhamos respeito para com nossos mestres e com nossos pais. Em sinal de respeito pedíamos a benção  ao deitar e ao levantar. Os meninos brincavam de esconde-esconde, bolinha de gude e caçavam passarinhos com estilingue, alçapão e laçinho,  e as meninas com bonecas, de amarelinha e de cobra-cega. E éramos felizes…

Não existia depressão e era muito pouca a incidência de obesidade, nem psicólogos existiam! A cada chuva de verão pescávamos bagres sadios em qualquer arroio das proximidades, viajávamos de trens tracionados pelas locomotivas a vapor cujo combustível era a lenha de espécies nativas, as saudosas Maria Fumaça. A usina de Itaipu era projeto e as sete quedas estavam vivas e esplendorosas. Éramos muito felizes…

Nosso alimento era comum, sem muito processamento. O pão de padeiro, como se chamava, era cilindrado em equipamento de madeira, assado em forno a lenha e distribuído com gaiotas de madeira com tração animal, e a entrega era com um balaio feito de taquara. E éramos sadios e felizes…

O abate de bovinos era um ritual de sacrifício aberto ao público e o animal era desnucado com uma lança em cima de um vagonete, em seguida sangrado e suspenso pelas pernas trazeiras para esfola e evisceração. As pranchas eram carregadas em um carretão também com tração animal e entregues nos açougues sem resfriamento e sem proteção.

No açougue os cortes eram feitos em cima de um cepo de madeira com ferramentas manuais, serrotes, machados etc. E as encomendas pelos consumidores eram feitas com pratos esmaltados onde se escrevia no fundo com grafite (lápis) o tipo de carne  e o peso. Ou quem não encomendava e não levava recipiente a carne era enrolada em papel de embrulho e por cima uma folha de jornal. E éramos felizes…

Os governantes financiavam e incentivavam o desmatamento em nome da abertura de novas fronteiras agrícolas. Ficaram com a maior parte das terras a exemplo do que se faz hoje no norte do país, mas éramos felizes. As várzeas foram drenadas com  recursos públicos no programa Pró-Várzea. Os produtores rurais plantavam no sistema de queimadas e as áreas eram alternadas e a cada ciclo a natureza se recompunha e se formavam as capoeiras nativas e se produzia muito mel, as famílias usavam a tração animal para o trabalho e  o transporte. Era desconfortável, mas todos eram felizes…

O Monsenhor Henrique visitava o  interior com sua baratinha Ford 29, depois com um Jeep Willians e era acolhido por todos nas comunidades com respeito pelo seu desprendimento,  simplicidade, amor ao próximo e autenticidade. Desta forma ele era um líder de forma tal que conseguia mobilizar voluntários para todo ano, no  dia 26 de dezembro, realizar a festa de São Benedito. E as carnes de galinha e leitão eram de animais doados pelos devotos, e abatidos e limpos pelos voluntários. E nunca morreu ninguém por isto. E éramos felizes…

No serviço de telefonia a atendente conectava ao número solicitado o número do solicitante. E nem era preciso dar o número, era só falar o nome da pessoa. Éramos felizes,  pois nem horário político gratuito tinha. Os conceitos de vida, da preservação, de respeito, de relacionamento de família, de saúde, de alimentação, de moral, de valores reais para a humanidade, sofreram severas alterações. Pressionados pela dinâmica da vida moderna que sempre nos envolve de forma ilusória e com soluções mágicas para tudo, mas que na maioria da vezes apenas consegue maquiar e mudar a denominação dos problemas. O grande e principal problema da humanidade é  o ser humano, que é falso, hipócrita, imoral, incrédulo e que pratica a  idolatria da vazão aos seus desejos e ambições em detrimento de todo e qualquer valor humano. Queira Deus que os nascidos neste século adotem medidas de reversão para o caos instalado na humanidade e entendam que os valores reais da existência humana têm Deus no topo e a família na base. E tudo aquilo que nos desviar destas referências são formas para dar continuidade a esta queda livre rumo ao fundo do abismo. E é tão simples e fácil ser feliz…

Este texto foi inspirado pela simples observação da minha vida. E eu sou feliz.

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