À medida que as invasões se tornam lugar comum, naufraga um aspecto vital da democracia, que é a humildade de jamais tentar impor as próprias ideias aos demais
Que havia deputados federais interessados em enfraquecer as medidas de combate à corrupção propostas pelo Ministério Público era fato amplamente conhecido. As manobras mais recentes seriam uma mudança radical na composição da comissão especial que analisa o projeto de lei e uma tentativa de apresentar votos em separado que desfigurariam o projeto. A revolta dos deputados ganhou força depois de o relator das Dez Medidas, Onyx Lorenzoni, concordar com a retirada de um acréscimo feito por ele mesmo ao projeto original e que previa a possibilidade de juízes e promotores responderem por crime de responsabilidade em caso de abusos.
Esse foi o motivo alegado para um grupo invadir o plenário da Câmara dos Deputados na tarde de quarta-feira, interrompendo uma sessão não deliberativa e pedindo golpe militar (eufemisticamente chamado de “intervenção”). Uma das invasoras cuspiu em um segurança da Câmara e houve tumulto; o grupo subiu até o local onde fica a Mesa Diretora e passou a gritar palavras de ordem. Os próprios invasores se disseram “de direita”, afirmaram que a ação foi combinada via WhatsApp e que o objetivo era “fechar o Congresso”.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, servidores públicos cercaram o prédio da Assembleia Legislativa fluminense enquanto começava a discussão de um pacote de austeridade particularmente severo para sanar as contas do estado, que está praticamente falido. Cinco pessoas ficaram feridas, o jornalista Caco Barcellos foi agredido e os manifestantes derrubaram uma grade, mas não repetiram o episódio do dia 8, quando o plenário da Alerj foi invadido. “Isso aqui vai virar um inferno” foi o grito de guerra dos invasores na ocasião.
No Paraná, embora os invasores tenham deixado o Prédio Histórico da UFPR – após a reitoria aceitar condições que nada tinham a ver com a MP do Ensino Médio ou com a PEC do Teto, motivos alegados para o ato –, eles permanecem em outros prédios da instituição. Outras universidades também tiveram câmpus invadidos em outros estados.
Impedir que se consolide um golpe na tramitação de medidas de combate à corrupção; defender o próprio salário, vitimado pela roubalheira dos governantes; protestar contra uma PEC que afeta o gasto público; exigir mais voz na discussão sobre o ensino médio. Essas são causas perfeitamente legítimas (ao contrário dos pedidos de golpe militar, que fique claro), em torno das quais os cidadãos podem se organizar. Mas o fato de cada vez mais brasileiros usarem maneiras autoritárias de se expressar – seja bloqueando direitos dos demais, nas invasões de universidades, seja impedindo o funcionamento das instituições, nas invasões de casas legislativas – é preocupante e revela aquele “déficit democrático” de que temos falado desde que cresceu o movimento secundarista que parou escolas no Paraná. Déficit este que atinge todas as pontas do espectro político, como se pode ver.
À medida que as invasões se tornam lugar comum, naufraga um aspecto vital da democracia, que é a humildade de jamais tentar impor as próprias ideias aos demais, por mais nobres que elas sejam – e quem duvida que é nobre defender projetos de combate à corrupção, lutar pela manutenção do próprio salário, pedir mais investimento governamental em áreas que se considera prioritárias ou querer participar de discussões sobre o sistema educacional do país? Na democracia, as controvérsias e as divergências de opinião são resolvidas pelos canais institucionais previamente definidos e que incluem o Poder Judiciário e o crivo popular (em plebiscitos ou referendos) ou dos representantes eleitos pelo povo. Nesse processo, às vezes se ganha e às vezes se perde – e, quando se perde, a resposta à derrota deve ser o aprimoramento dos argumentos e das estratégias de persuasão, nunca o recurso à força. Pois a mobilização, se feita de forma democrática, sempre rende seus frutos, como no caso, já recordado pela Gazeta, das Diretas Já, rejeitadas de imediato, mas que abriram o caminho para a eleição de 1989. Quando se escolhe a força como meio de imposição das próprias convicções, no entanto, pavimenta-se o caminho para cada vez mais radicalismo.